quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Narcisismo e as relações de trabalho e liderança

“Tudo quanto penso
Tudo quanto sou,
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.”

Fernando Pessoa


A atividade profissional de um cidadão captura, se não a totalidade, uma grande parte de seu tempo de vida. Homens e mulheres absolutamente entregues à rotina de trabalhos cada vez mais exigentes vão contribuindo para um aumento contínuo de doenças e desajustes emocionais, todos praticamente amparados por uma sociedade que, ao invés de promover a libertação do ser, parece sim exercer força disciplinadora sobre os corpos e espíritos onde nem as crianças se vêem livres. Parece que os interesses sociais visam mais controlar os sujeitos do que promover sua libertação, pensamento este compartilhado por Gilles Lipovetsky (2004) em “Os tempos hipermodernos”, numa busca incessante pelo poder, dinheiro e beleza em detrimento de um amadurecimento subjetivo.

Os mecanismos de controle historicamente conhecidos parecem atuar, atualmente, de forma mais subjetiva, talvez através das comunicações e tecnologias, sobre o sujeito moderno. Os sujeitos se vêem sempre a mercê dos ditames sociais sem ao menos perceber o grau de controle e direcionamento destes sobre suas vidas. Ao mesmo tempo em que vemos a valorização da autonomia e independência destes vemos também um sujeito perdido e completamente esquecido de si. Se a idéia de que o desenvolvimento pessoal, o crescimento e a felicidade passam pela projeção na carreira profissional esta, cada vez mais embasada pelo conhecimento adquirido, parece contribuir para o surgimento de um paradoxo: quanto mais se conhece, mais se aliena. Os fatos comprovam tal afirmação quando se assiste aos jornais diários ou verifica-se o quadro de internações e consultas dos hospitais e clínicas diversas. Cada vez mais as pessoas estão envolvidas em angústias, infelicidades e doenças. As situações de desestruturação humana não estão mais restritas aos menos favorecidos econômica ou intelectualmente, mas sim numa enorme massa de sujeitos, a priori, preparados para se desenvolver e amadurecer de forma saudável e, acredito, “vencer na vida”.

O paradoxo observado é, por um lado, o alcance cada vez mais facilitado do conhecimento e, por outro, a distância entre esse conhecimento e a produção de qualidade de vida. Observando a vida profissional, percebemos que a qualidade de liderar pessoas, entre outras, exercem grande influência na carreira dos sujeitos e no nível de qualidade desse profissional. Desenvolvem-se para se tornarem líderes, pois dotados dessa qualidade é que poderão subir na carreira. Nesse sentido, os crescentes investimentos das organizações, de modo geral, em cursos, treinamentos e processos de aconselhamentos em liderança mostram o grau de importância dessa qualidade na condução de uma organização. Mas, contrariando o previsível, esse esforço intelectual passa as margens da ação do ego, da influência do narcisismo impactante no modo como se tecem as relações de troca entre esses sujeitos. Tecnicamente preparados, mas emocionalmente alienados, os constantes entraves presentes no dia-a-dia do trabalhador em posição de chefia comprovam a atuação de um narcisismo mascarado de vaidade que leva, na grande maioria das situações, aos caos, ao estresse, a perda de qualidade de relacionamento, ao prejuízo e perda de tempo.

Muitos desses investimentos remetem para a idéia de um líder conectado consigo, com seu mundo subjetivo e, partindo disso, com grande capacidade de lidar com pessoas, seja direcionando ou inspirando. Mas esse esforço não consegue e nunca conseguirá atingir as potencialidades subjetivas, pois o narcisismo presente não é foco de desenvolvimento pessoal, muito menos digno de observação e cuidados.

Pois bem, esse conhecimento está sendo utilizado para uma melhor forma de viver? Será que a liderança é, por fim, uma forma de alienação dos sujeitos reféns de sua vaidade? Chama-me atenção essa específica relação visto que o ambiente de trabalho ancorado numa carreira de liderança propicia um aclaramento dos investimentos libidinais mais do que em qualquer outro lugar. As barreiras do ego estão sempre presentes no trabalho de aconselhamento profissional onde as maiores dificuldades do cotidiano de mostram intimamente ligadas às defesas pessoais e não a decisões profissionais.

Muito se investe em desenvolvimento de capital humano nas organizações e, atualmente, com um discurso aparentemente mais humanista. Qualidade de vida virou produto e a empresa entendeu isso. Com seus arsenais midiáticos produzem sujeitos desejantes com vontade de realizar mais e mais. Ao mesmo tempo, um confronto se instala entre as paredes do escritório, cujo produto é um sujeito incapacitado de agir, imerso num narcisismo alienado, cego para as escolhas dos caminhos e surdo frente ao próprio estardalhaço que cria. Afinal de contas, a cultura aponta para que todos sejam fortes, com um ego forte, certo?!
Comunicações distorcidas, posturas conflitantes, decisões arrogantes, abuso de poder e humilhação são apenas amostras de uma subjetividade enfraquecida e dominada pelo narcisismo, por um ego distônico.

Parece que o líder precisa ser quase um super-homem para conseguir desenvolver tantas qualidades e, ao mesmo tempo, conseguir ser líder de seus próprios desígnios. Questiono o quanto esse processo possa ser penoso e angustiante se este sujeito encontra-se distante de sua subjetividade, carente de reflexões e humildade para realmente “se enxergar”, e assim fazer contrapostos com os ditames sociais. Vejo barreiras e empecilhos em torno do ego, calcadas num narcisismo ciumento, que emperram esse trajeto. A liderança, se realmente pode ser desenvolvida, deve necessariamente passar pela maturidade psicológica e não relegada a padrões de comportamento. Vale aqui a questão: A análise seria uma opção necessária para os líderes?

Digo isso em virtude de um trabalho que também desenvolvo junto a lideranças nas organizações em franco crescimento. Trabalho este conhecido como Coach, focado na maturidade profissional, que procura promover melhores condições sobre a atual situação do líder e assim possibilitar uma reflexão sobre os bloqueios, medos e dificuldades que sente na condução de seu trabalho na empresa. Existem tantas dificuldades de ordem egoica na condução desse trabalho que me fez remeter as formas de funcionamento desses egos, a partir do narcisismo e o conseqüente surgimento do Ideal de eu (Ideal de ego).

Lembro-me de uma palestra com o psicanalista Joel Birman cujo tema foi “A Família Contemporânea” onde conclui que o individuo atual carece de uma dose de narcisismo por parte do trabalho de análise visto que seu narcisismo foi mal elaborado ou, melhor dizendo, sua construção foi fragilizada e que tal sujeito carece de um olhar desejante. Isso me fez pensar na vaidade presente no ambiente corporativo onde a necessidade de atenção a qualquer custo, proveniente talvez dessa falta de “narcisisação” infantil, promova um descompasso geral contribuindo para situações de estresse e angústia sem que os sujeitos de dêem conta disso. Percebe-se a atuação do neurótico, subjacente, dominado por seu ego em conflito, este com defesas constantemente armadas frente a uma “guerra” proveniente da presença do outro. Esse outro, como detentor de seus desejos, que precisar ser eliminado. Como disse Freud em Totem e Tabu, “a neurose é o preço que se paga para se sair da barbárie”. A barbárie imposta pelo escritório?

Em sua obra “Sobre Narcisismo: uma introdução”, Freud nos conduz uma conceituação particularmente interessante nesse jogo de relacionamentos: o Eu Ideal e o Ideal do Eu. Tais conceitos partem da introdução da seqüência de funcionamento libidinal caracterizadas pelas fases de auto-erostismo, narcisismo e escolha de objeto que culminam na formação de um eu ideal e ideal de eu. O narcisismo, a partir do auto-erotismo, precisa se distanciar da perfeição narcísica infantil para que se dê o desenvolvimento do eu, e isso ocorre pelo deslocamento da libido para um ideal do eu imposto em choque com o exterior. Mas apesar do distanciamento há uma tentativa de readquirir o narcisismo perdido, num movimento rumo a um novo ideal caracterizado como narcisismo secundário. Diz Freud:

“O Narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal que, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda as perfeição de valor... Ele não está disposto renunciar a perfeição narcisista de sua infância, e quando ao crescer se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la na nova forma do ideal do eu. O que projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituo do narcisismo perdido na infância, na qual ele foi seu próprio ideal.”

Ou seja, o narcisismo “popular” é o narcisismo secundário, que surge a partir de um retorno da libido externa para o eu ideal do narcisismo primário. Todo o momento pulsional passa e é mediado por um ego constituído a partir desses narcisismos. O narcisismo do ego ideal é transferido para os ideais que o sujeito passará se esforçar para alcançar no futuro, numa promessa da restituição, pelo menos em parte, da perfeição narcísica perdida. E é aqui onde o sujeito para.

De acordo com Bleichmar, o narcisismo adquire uma prioridade sobre a biologia. A exigência de ser amado, exigência egóica, se desenvolve a partir de uma necessidade de satisfação narcísica. Tal necessidade de satisfação, agirá no psiquismo como uma espécie de atividade pulsional, sendo sempre convocada a ser satisfeita, acompanhando o sujeito por toda sua vida, levando-o a ultrapassar e superar as tendências pulsionais parciais.

“Originalmente, o eu é objeto privilegiado de investimento libidinal, a ponto de se constituir como o grande reservatório de libido, armazenador de toda libido disponível. Esse momento, Freud denomina como narcisismo primário. Posteriormente, o investimento libidinal passa a incidir sobre objetos (representações), o que corresponde à transformação da libido narcísica em objetal. No entanto, diz Freud, “durante toda a vida o eu continua sendo o grande reservatório a partir do qual investimentos libidinais são enviados a objetos e para onde são recolhidos, tal como um corpo protoplasmático que estende ou recolhe seus pseudópodes. O retorno desse investimento libinal ao eu, após ter investidos objetos externos, Freud denomina narcisismo secundário".

Refletindo sobre o estagio do espelho, de Lacan, a formação do eu se dá através do olhar do outro, desse outro significante. Numa metáfora do espelho, onde o bebê se reconhece a partir do olhar de si mesmo, é o “como” essa criança é olhada que contribui para a formação do seu narcisismo – inconscientemente reconhecida. Como significantes, entendemos não somente as figuras paternas, mas também todo um grupo onde, para o sujeito, se vê inserido e significado. No narcisismo primário o eu ideal é formado a partir de uma imagem, do imaginário do bebê. Após a resolução do complexo de Édipo, através da interdição do pai (Nome do Pai em Lacan), a criança passa a ter acesso a ordem simbólica, a ordem do outro.

Pensando assim, como será que atualmente esses “eus” estão se constituindo, numa sociedade marcada por tantas contradições? A ausência de significantes ou a incapacidade psíquica de se olhar parece contribuir com indivíduos carentes, dominados por “eus” desejantes. Mas, desejantes de que?

Como se percebe, parece que a presença da análise na vida dos indivíduos teria muito a contribuir com seus caminhos, pois se trataria – “no divã” - as defesas que aparecem no cotidiano, estabelecidas a partir desse ego “particularmente narcisisado”, promovendo um estado melhorado na relação do eu com o outro. Pensando em Lacan, é no simbólico, caracterizado com o narcisismo secundário que se tece as relações desejantes a partir do desejo do outro. Esse outro ficaria destituído como ameaça frente a análise e, conseqüentemente, sem necessária destruição o que possibilitaria uma visão menus cruel da realidade circundante como também contribuiria para um superego menos castrador. Deixar com o outro o que é do outro e lidar apenas com o que é próprio contribuiria para um fortalecimento de um ego mais saudável. Admitir que esse eu é incompleto é abrir mão de parte desse narcisismo para aceitar a incompletude.

Concluindo, a relação analítica tem muito a contribuir para um amadurecimento psíquico em qualquer instância e, muito significativamente, para as relações que envolvem o sujeito, o sujeito do inconsciente, com o universo do trabalho.